ARRANJO CÊNICO – uma virtualidade.

ARRANJO CÊNICO – uma virtualidade

Magno Bucci  2012

Como venho sinalizando, minhas intervenções constituem apenas um levantamento de pontos para o debate acerca da modalidade coral cênico. Neste, e nos textos anteriores, não há grandes teses a serem defendidas nem menos reflexões exaustivas, são questões verificadas na prática e que – acredito – merecem observações. Outra advertência é que, de maneira definitiva, não faço consideração nem incursão de nenhuma ordem no universo do saber – prática e teoria – musical. Reafirmo, também, posição anterior de que minhas observações partem do meu trabalho com o Bossa Nossa sem intenção de “ditar regras”, nem ensinamentos ou estabelecer mais um verbete para ilustrar um hipotético codex sobre o assunto “coro cênico”. Acima de qualquer pretensão, as questões são “provocações” com a melhor das intenções.

           Em textos anteriores, falei acerca de “especulações conceituais” e ideias do que seja CC garimpadas em sítios eletrônicos, além de algumas práticas encontradas no parco material de pesquisa. Apontei a necessidade de adensamento de parte da linguagem teatral para compor de maneira mais equilibrada uma noção de CC. Defendi que mesmo com a prevalência da música para efeitos de CC, não podemos negligenciar a cena ou minimizá-la. Destaquei a necessidade de se considerar a “existência da ação dramática” no processo de criação em CC. Afirmei que CC é algo vocacionado, independente de um coro ter uma experiência em CC. Disse também do processo convergente do canto e do processo divergente da criação cênica. Rebati a ideia – bastante frequente – de que todo coro é cênico, basta que esteja em cena. Posicionei-me contra a apreciação de que a cena é um espaço onde “vale tudo” e refutei as críticas – redutivas – à modalidade quando alegam que o “cênico” empana o brilho do canto.

            Desta vez, gostaria de colocar em foco a construção do ARRANJO para a modalidade. Sem intenção de adentrar território alheio, como já afirmei, arrogo-me tão somente a possibilidade de explicitar impressões acerca do que considero possam ser “questões” atinentes à prática do coro cênico.

            Antes de “atacar” o assunto propriamente dito, é necessário esclarecer em parte o esquema em que o Bossa atualmente se estrutura – grosso modo – para criar seu produto artístico. Apenas definido o tema, assunto, história ou conteúdo, o subsequente verbo de ação é CONCEBER o espetáculo, ou seja: começa a ser articulada a concepção[1] do trabalho. Para efeito deste texto, concepção deve ser entendida na sua literalidade etimológica: compreender para gerar, processo que se traduz na capacidade de conhecer, planejar e projetar. Como sinônimos desse processo: criação, invenção e imaginação entre outros. 

Tentando detalhar um pouco mais essa “usinagem”, a concepção estabelece a necessidade de se criar um campo teórico no qual possibilidades, associações, imbricações e outras formulações possam ser averiguadas, investigadas, discutidas, confrontadas, analisadas. Um jogo intelectual de inúmeros cruzamentos. O terreno no qual vários saberes convergem, um espaço em que se pode fazer investidas em questões estéticas e conceituais; filosóficas, religiosas e políticas; lendas e crendices; senso comum, usos e costumes, enfim, tudo aquilo que pode avançar no entendimento do assunto a ser trabalhado. A concepção é a ideia basilar do espetáculo em que fica assegurada a sustentação teórica da escolha, argumenta-se acerca da seleção e definição de conteúdo, roteiriza e sequencia. E – talvez o aspecto mais importante – é o ponto para o qual se deve retornar quando a “obrigatória” autocrítica acenar. E, tratando-se de produção em Arte, ela – a autocrítica – é sempre necessária.

Com a compreensão do que se quer representar, a concepção colocada na esfera do didático precede qualquer outro “nível de criação” e não se encerra como primeiro ato criador. Obviamente, ajustes e aprimoramentos devem ocorrer uma vez que o produto artístico ancora-se em campo  no qual tendências e virtualidades devem permanentemente ser refletidas, devem convergir, devem ter fundamento, coerência, devem se aproximar, formar um todo lógico e/ou fundamentado e/ou defensável conceitualmente. E, reitero, não se enclausura em único momento. A ação de concepção reflete, repercute em todo processo, quer dizer: não se concebe e pronto! É um moto-contínuo.

No estágio da concepção do espetáculo Nóis ganha poco mais nóis si diverti – Tributo a Adoniran Barbosa, que rende homenagens ao multifacetado artista João Rubinatoabrimos com a direção musical uma discussão – entre outras – acerca do arranjo para coro cênico. E um dos pilares baseou-se em uma questão significativa no teatro: COMO TRABALHAR A REPETIÇÃO DE UM TEXTO.

Como o saber musical tem fundamentos e argumentação suficientes para justificar a reiteração de uma estrofe, rima ou verso entre outras razões como fator de fixação, como não me atrevo a discutir sobre a arte musical e como não se trata de alterar absolutamente nada da letra de uma canção, continuemos sob a ótica teatral.  

Se valer para CC o que vale para a arte cênica, ou seja, no ato teatral não existe replay a não ser o intencional, o previsto na concepção, o que é conceitual ou esteticamente proposital, como então trabalhar a repetição de um texto, de uma estrofe, de um refrão na modalidade coral cênico?

Da perspectiva teatral e sem muita teorização, e guardadas as excepcionalidades acima mencionadas, na cena ao vivo e de maneira geral, nada se repete com a mesma exata emoção, com a mesma exata intensidade, com a mesma exata intenção. Na repetição de uma “fala”, por exemplo, operam agravantes ou atenuantes que apontam variações intencionais e/ou emocionais. A repetição seguida ou não de um texto deve apresentar ênfase diferenciada: uma reiteração, uma insistência, uma renovação mais acentuada, etc., quer dizer, não se repete a exata motivação na repetição da “fala”. A intencionalidade, quando o texto se repete, altera, exaspera, abranda, enfatiza as tonalidades da teatralização.  

            Dito isso, tomemos o assunto deste texto: “ARRANJO CÊNICO”. Denominação adotada na falta de uma melhor designação.

Para assuntar o tema em foco, proponho como ilustração uma música do espetáculo Nóis ganha poco..., a canção No morro da Casa Verde de Adoniran Barbosa, arranjo de Adriane Biagini e Daniel Silva. O arranjo foi finalizado após discussões  em que o ponto de vista “da cena” foi discutido e considerado como contribuição ao aprofundamento de questões acerca do CC e também como elemento diferenciador... pelo menos para o Bossa Nossa.

Contextualizado no cenário da arte teatral, faço um RECORTE ILUSTRATIVO para tentar projetar um pouco mais de luminosidade ao assunto:

Em Macbeth de William Shakespeare, ato V, cena I, o último texto de Lady Macbeth é:

LADY - Para o leito!  Para o leito! Estão batendo no portão. Vinde, vinde! Dai-me a mão. O que está feito não está por fazer. Para o leito, para o leito, para o leito. (sai)

          Na fala de Lady Macbeth, a repetição por exemplo de “para o leito”, possibilita ao encenador uma espécie de ascensão através da “ESPIRAL DE TENSÃO”[2]  na loucura de Lady Macbeth. Não apenas o texto repetido, mas os intervalos entre eles, oferecem à encenação a capacidade de revelar matizes da insanidade de Lady, nuances do seu transtorno, seu delírio, sua demência irreversível, o estado terminal da sua insânia, sua alucinação, etc. Oferece a possibilidade de demonstrar uma espécie de “mapeamento da emoção”: cada vez que o “para o leito” é dito, apresenta-se a possibilidade de uma nova tonalidade, outro ângulo da demência, agravantes da loucura são percebidos. O martírio é revelado em progressão.

Consideremos para este caso especificamente a noção da Espiral de Tensão como relativamente simples, tendo em vista que a intenção era levar a ideia para o campo do arranjo para coro cênico no que tange, repito, as produções do Bossa Nossa na modalidade.  

O arranjo de No Morro da Casa Verde, que integra o espetáculo, foi finalizado depois de algumas reflexões entre a direção cênica, arranjadores e direção musical. E a premissa levantada pela direção cênica era a de que deveríamos enfatizar uma interpretação diferenciada, principalmente com relação à repetição, ou seja, canta-se duas ou mais vezes a mesma letra, só que cada vez a intencionalidade naturalmente é diversa, quer dizer, adotaríamos o princípio da espiral de tensão. Postura essa que – óbvio e claro – não é meramente técnica, deve sempre ser – como foi – precedida de discussões.

A letra da canção diz:

Silêncio, é madrugada.

No morro da casa verde

A raça dorme em paz

E lá embaixo

Meus colegas de maloca

Quando começa a sambá não pára mais

Silêncio!

Valdir, vai buscar o tambor

Laércio, traz o agogô

Que o samba na casa verde enfezou!

Silêncio!

 

            A música para o espetáculo foi arranjada usando a combinação AAB AAB com repetições no final: que o samba na casa verde enfezou! que o samba na casa verde enfezou!

A finalização do arranjo, resultado da discussão entre a cena e a música, resultou em um exemplo clássico do que pode vir a ser uma sugestão para “arranjo cênico”: sugestão do ponto de vista teatral. 

Vale lembrar que se trata aqui desse arranjo no espetáculo como está montado: um estúdio de rádio onde tudo deve ser canalizado para a locução, isto é, através da voz, não há uma encenação da música ou uma encenação para a música a fim de emoldurar o arranjo; encenação no sentido de marcações, movimentos ou qualquer outra evolução em cena. O que há é a percepção da ação dramática, seu princípio ativo através do ato de cantar.

 

A HISTÓRIA QUE SE DESENVOLVE E EM TORNO DA QUAL TRABALHAMOS.

Passo ao relato do que foi construído e pode ser “lido” através do arranjo. Peço desculpas pela obviedade do enredo – ele é previsível, simples e corriqueiro – ao mesmo tempo asseguro que realizamos o que nos propusemos em relação à busca de uma possibilidade de “arranjo cênico”.

          Se pudermos estabelecer – e esse foi o nosso percurso – bases em torno das quais possamos ancorar a interpretação do arranjo, algumas “sentenças de ordem” destacam-se e propõem eixos de ações. Obviamente que os eixos destacados não são os únicos, muito menos que, com eles, o debate esteja encerrado: é apenas uma leitura. Dessa forma, para efeito do que nos propusemos na ocasião das discussões de criação, os eixos estabelecidos atenderam perfeitamente ao “experimento” musical que pretendíamos. Os eixos elencados foram:

 

Silêncio, é madrugada,

2ª Meus colegas de maloca Quando começa a samba não pára mais 

          3ª Que o samba na casa verde enfezou!

4ª Ritornello acrescido.

 

           Primeiro eixo: silêncio, é madrugada. Através desse movimento o arranjo projeta um grupo de amigos/as – “a turma do funil” –   pessoas do mesmo pedaço, da mesma comunidade, companheiros, turma alegre em seu “clube da esquina” produzindo um cantar estrelar, voltando da noitada. Do enfoque da direção cênica, a “ação dramática”, a força geradora, já foi manifestada, já está presente.  “A “ação”[3] é  anterior aos primeiros acordes, “introduz” o arranjo. O tônus está preservado. A alma animada não se constrói a partir das notas iniciais.  O divertimento se sustenta. As personagens “vestem” a festividade. A comemoração mais geral acabou, mas os ecos gostosos do acontecimento permanecem. O conjunto ainda segura o ar brincador que provavelmente só cessará quando cada um “pregar os olhos” para o sono reparador. Turma que carrega isso é gente que “só quer mostrar que faz samba também”... E bom! Samba marcado com pompa e circunstância. O grupo está contaminado: ainda no clima da festa, da balada, da confraternização, da comemoração ou de qualquer outra manifestação alegre. Elas e eles carregam o contentamento; estão impregnados da aura do divertimento. O samba cantado tem o gingado da brincadeira gostosa, da farra, da alegria. É a “cadência bonita de um samba” – de todos os sambas! percutindo matreiro, abusado, astuto. Todavia a “patota” demonstra o cuidado com o “silêncio”, respeito com a calada da noite, atenção com quem não participou da noitada, com aquele que descansa e dorme. O volume do som é de gente junta, ombreada, cantarolando baixo apenas para os próprios ouvidos. Atitude que revela responsabilidade com o coletivo. Uma celebração preocupada com o entorno. Comemoram ao mesmo tempo em que respeitam a coletividade mantendo a música “em surdina”.

Segundo eixo: Meus colegas de maloca Quando começa a sambá não pára mais...   Nesse segmento observa-se que o estado de “alegre” – claramente contagiante – dá sinais de algo que começa a ficar incontrolável. A temperatura começa a subir novamente. A efervescência do samba manifesta-se: o samba agora torna-se mercurial. O grupo começa soltar as amarras. A celebração do samba é algo que se mostra impossível de se colocar freios. Difícil estancar a elevação de pulsação. É “batucada de bamba” rasgando a noite; apertando o silêncio nos cantos. Quanto mais a turma entoa, mais fundo o entusiasmo vai penetrando e exaltando, aquecendo, aumentando o batimento cardíaco. A “gente fina” não se controla! “Está com a macaca”. O contágio é inevitável, ninguém recua... nem recusa a entregar-se. É irreversível: o tom cuidadoso do antes corre perigo. Estão começando a “botar pra quebrar”.

Terceiro eixo: Que o samba na casa verde enfezou! Obviamente o termo “enfezou” não é visto em sua acepção etimológica nem como sinônimo de irritado, bravo, nervoso ou irado. O significado do termo é explosivo: nitroglicerina! O samba decola! Impossível controlá-lo! A ação é detonadora.  O que ainda estava represado estoura os diques. O samba agita-se, bate forte, vibra frenético; começa a “bombar” alucinado, enfurecido. É batucada em ebulição.  Há um coroamento das “alegrias” do grupo. A explosão é o clímax – novo clímax – daquele encontro, daquela reunião. Os prazeres do samba gritaram mais alto. Ensurdecem mais. A turma “possuída”, indomável, altamente energizada, excitada, deixa de lado qualquer cuidado, qualquer atenção com o entorno. Exalta, comemora, revive, retoma a dimensão maior da aura festiva. É o esplendor. Os amigos/as “arrebentam a boca do balão”. Avançam limites... Ação quase catártica na qual instrumentos tangidos freneticamente e vozes em êxtase anunciam o ápice do samba.

Ritornello: Passado o “transe” a turma volta ao silêncio... que entoado agora revela todos de “alma lavada”. A “turma do funil” prenha de contentamento resgata as atenções e cuidados iniciais terminando a cantoria e apagando as luzes daquela noite... a batucada se dissipa na escuridão da noite. O samba volta a hibernar até novo encontro no “clube da esquina”...  Dia seguinte... mesma hora.

A direção cênica, fundada no arranjo, projetou “a cena” de No Morro da Casa Verde seguindo a sequência acima explicitada.

Finalizando, o Maestro José Gustavo Julião de Camargo afirmou certa vez que a “criação coral pode ser obra originária ou obra derivada”. Nessa perspectiva penso que o arranjo, entendido como “obra derivada”, pode aproveitar-se de outros conhecimentos, jogar com a influência de outras linguagens. Se isso acontece, nada mais oportuno do que pensar na relação de criação entre arranjador, diretor musical e diretor cênico como uma possibilidade de ampliação de horizontes. Bom para a modalidade coro cênico.

[1] Concepção – do latim concipere (conceber) “gerarcompreender” (cf. Dicionário Etimológico Nova Fronteira de Antônio Geraldo da Cunha).

[2] A título de ilustração, e sem investidas mais conceituais ou creditadas a um único “saber”, se tomarmos como exemplo “medo” como grau mediano da idêntica sensação, podemos, para efeito de evolução nesse estado – agravando ou atenuando  as reações, estabelecermos uma “régua” que poderia ter a seguinte gradação: receio, temor, medo, pavor e pânico, etc. levando-se em conta a necessidade da composição cênica.

[3] O verbete “ação” encontrado no Dicionário de Teatro de Patrice Pavis é suficientemente  substancioso para o entendimento e compreensão de sua aplicabilidade. 

perfil Samuel Kerr - Uma das grandes expressões do Coro Cênico junto com Marcos Leite e Izaíra Silvino

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NEM TODO CORO É CÊNICO E NEM TODO “CORO CÊNICO” É CÊNICO

NEM TODO CORO É CÊNICO E NEM TODO “CORO CÊNICO” É CÊNICO

Breves reflexões a partir de uma prática II

Magno Bucci 2010

Minha posição, observações e questionamentos com relação às discussões acerca da modalidade coro cênico enquadram-se – exclusiva e tão somente – dentro dos limites da perspectiva teatral. Minha visão e entendimento acerca do que seja “cênico”, em relação à atividade coral, foram explicitadas no texto Coro Cênico: breves reflexões a partir de uma prática de 2007. Muito embora no artigo citado eu tenha assinalado posição favorável aos parâmetros contidos no título do presente texto, penso que algumas outras considerações na mesma direção são oportunas, com o objetivo de robustecer a modalidade. Se no todo, determinados pontos deste artigo parecerem redundantes, credite o fato à incapacidade do autor de ter sido suficientemente claro anteriormente, portanto, há a necessidade de insistir em alguns aspectos.

Primeiro, é importante UM FLASH DA HISTÓRIA.

Um dos nomes maiores da renovação do canto coral no Brasil, em especial para a modalidade CC (coro cênico), é o de Marcos Leite. Outros nomes de expressão da música coral, também são signatários de uma “carta de liberação” para o coro, entre eles o respeitado Samuel Kerr[1], organista, cravista, professor e regente de inúmeros corais, com trabalhos reconhecidos em várias frentes, e o de Damiano Cozzella, músico de excepcionais qualidades, um dos arquitetos da tropicália, vanguardista do importante “Música Nova”. Todavia, como este texto não se refere ao ato de cantar, é necessária apenas uma brevíssima introdução histórica, e apenas o nome de Leite é necessário destacar, balizado por uma única ocorrência – acredito – decisiva para a modalidade coro cênico, qual seja: a apresentação da Cultura Inglesa no festival de MPB Shell de 81, pedra de toque de nossa atividade coral.

Marcos Leite é unanimidade. O maestro e uma plêiade de “cúmplices”, além de seguidores, marcaram de maneira inquestionável a atividade coralística em nossas terras. O trabalho desses “quixotes” – além de ter eletrizado e contaminado aqueles que, direta ou indiretamente, viram os resultados de suas “ousadias” – fez história. É referência. Citação obrigatória em qualquer inventário musical coralista.

Sob o título Marcos Leite e seus arranjos vocais para o Grupo Vocal Garganta Profunda: aspectos históricos e estilísticos,  comunicação feita por Flavio Mateus da Silva e Fausto Borém, durante o 15º Congresso da ANPPOM – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música/2005, destaca-se a relevância do trabalho do regente: “a formação coral brasileira emancipou-se, em poucos anos, da postura ortodoxa da qual era vinculada, reconquistando seu papel social de integrar pessoas e fazê-las musicar em comunidade, de forma simples e gratificante. É neste contexto que, em meados da década de 1970, Marcos Leite monta alguns grupos vocais que viriam a consolidá-lo como uma das maiores referências no gênero no Brasil ao longo das décadas de 1980 e 1990. A grande maioria de seus arranjos, realizados a partir da música brasileira, tornaram-se peças de resistência do repertório de muitos corais e grupos vocais por todo o país. Marcos Leite tem sido também um importante modelo e estímulo para o surgimento de um número expressivo de arranjadores vocais envolvidos com a canção popular brasileira, cujo trabalho se estende à comunidade musical amadora, como os corais universitários e de empresas”.

Outro tributo mais do que justo, relato apaixonado, porém não menos detalhista e fundamental para compreender a importância de Marcos Leite para a renovação no canto coral, pode também ser verificado na entrevista de Nestor de Hollanda Cavalcanti, parceiro do maestro, registrada na publicação organizada por  Eduardo Lakschevitz Ensaios: olhares sobre a música coral brasileira[2]. Na entrevista/depoimento, Hollanda Cavalcanti reverencia o instrumentista, arranjador, compositor e regente criativo que foi Leite, reconhece-lhe o talento e presta importante serviço à memória da arte coral. Relata, entre outras conquistas, a evolução do coro da Cultura Inglesa para Cobra Coral até chegar à criação da Orquestra de Vozes – A Garganta Profunda, conjunto que coroa uma nova consciência da música coral no Brasil. E sobre o ato que marca a guinada do canto coral rumo a outros horizontes, a apresentação do Cultura Inglesa da obra do próprio Cavalcanti Cobras & Lagartos, no festival de 81, Nestor de Hollanda lembra aquela sexta-feira no Teatro Fênix RJ, com transmissão ao vivo pela Rede Globo, diante de uma plateia até então “fria”, “... no último bloco, na terceira música, entrou o Coral da Cultura Inglesa, jovem, todo de malha preta e descalço, com as bocas pintadas de vermelho, com um regente vestido com o mesmo figurino...” Finda a apresentação, a plateia delira surpreendida, satisfeita, recompensada. Um acontecimento! Resultado: Coral da Cultura Inglesa - Melhor trabalho criativo do MPB Shell 81.

O impacto causado pela apresentação de Cobras & Lagartos, no Festival, teve repercussão em todos os cantos. Uma febre tomou conta de grupos corais, muitos querendo seguir as mesmas pegadas: pedidos de oficinas, cursos, apresentações. Uma efervescência. O Cultura Inglesa, com aquele trabalho, materializava o sonho e o desejo de muitos coralistas, sinalizava que o novo chegara. Ventos inaugurais voltavam a inflar a música coral. 

E como “envolve-se” com a LINGUAGEM CÊNICA?

Quem relata em parte como foi esse “reencontro” é Rejane Ferreira de Paiva, em sua dissertação, Coro Cênico como Ação Cultural (ECA/USP 1999): “O Coro Cênico trabalha a maioria das vezes com obras do repertório da MPB (...) os regentes fazem arranjos em cima dessa música, criando a linguagem cênica para cada uma delas a fim de costurar o espetáculo (...) muitas obras nascem na forma tradicional, e o tratamento cênico é dado posteriormente pelo regente que a interpreta (...) outro tipo de tratamento cênico, quando a obra também não nasceu com indicação cênica, é dado na hora da criação do arranjoo arranjador contribui com o compositor dando sua sugestão cênica, como é o caso de “Joux Joux & Balanganda”, de Lamartine Babo. Concebida como música popular comum, o arranjo posterior de Alexandre Zilahi foi feito com sugestões cênicas, tais como “Entram as meninas de noivas e os rapazes de noivos” ou “Assobios masculinos – charmes para as meninas”[3](...) há também compositores que já direcionam o trabalho para uma cena específica na própria partitura, pensando desde o momento da criação em que o trabalho seja tratado de forma cênica, como se pode observar na partitura “Cobras e Lagartos”, de Nestor de Hollanda Cavalcanti, música defendida pelo Coral da Cultura Inglesa no MPB (...) na última página da partitura o compositor indica “O coro se nega a cantar esta palhaçada. Discutem, resolvendo apresentar a opção favorita do autor.”[4]  (GRIFOS MEUS). Cabem alguns esclarecimentos, sem muito rebuscamento, a respeito dos grifos acima.

Sobre autoria: em linha direta e objetiva, considero o autor da obra artística – falo exclusivamente sobre as linguagens em questão – plenipotenciário... até não ser reinterpretado! O autor de uma obra pode cercá-la integralmente, só até quando ela estiver presa em seu pen drive. Simples: qualquer pessoa, quando passa a conhecê-la, é como se o mundo se apropriasse em parte da criação do autor.  Uma obra realizada através de várias interpretações e execuções constitui-se numa obra com vários “níveis autorais”.

Sobre rubrica: aqueles que escrevem sobre CC – a maioria regentes – tendem a considerar a inclusão de notações do tipo: “Entram as meninas de noivas... Assobios masculinos... O coro se nega a cantar...” etc., feitas por compositores ou arranjadores, como ações efetivamente teatrais. Todavia isso não deve ser tomado como resumo da ópera da função da arte da cena. Em se tratando de teatro, esse tipo de anotação, em quase todos os casos, refere-se à rubrica, comumente verificada na dramaturgia, que por sua vez é um elemento do complexo do teatro. A dramaturgia não encerra toda a extensão em que a arte da cena deve ser escrita. O cumprimento – ou não! – da determinação da rubrica não aplaca a ira dos deuses da cena. É preciso mais para que a manifestação seja efetivamente cênica.  A rubrica tem a função de propor o ritmo da ação, sugerir a tensão, indicar a intensidade que o autor gostaria de transmitir, recomendar o tom daquele momento, etc. No teatro, a indicação – a não ser aquela absolutamente indispensável, imutável – pode ser assimilada ou não; pode também ser invertida, substituída, transferida, atualizada, etc. Acredito que a mesma regra possa ser aplicada ao CC. O regente, diretor musical ou diretor cênico (quando existe!) podem, seguindo interpretação/concepção embasada, “subverter” a indicação cênica sugerida.

A regência, direção musical, direção cênica, ou qualquer outra função em um coletivo de arte, são também criativas e não meramente executivas no sentido de acatarem, in totum, as propostas do “primeiro” autor.

Ainda sobre as contribuições de Marcos Leite, podemos considerar a trindade Coral da Cultura/Cobra Coral/Garganta Profunda como uma espécie de  “pai de todos” daqueles que, de lá para cá mesmo sem saber da origem, autoproclamam-se: coro cênico, coral cênico, coro performático, grupo vocal cênico, vocal cênico, cantores cênicos, madrigal cênico, coro cênico/performático, grupo musical cênico e todos agrupamentos que fazem, contemporaneamente, livre associação entre o canto coral e o teatro, a dança, a performance etc. Evidente que essa paternidade se ancora também em milênios de convivência harmoniosa entre o canto em coro e o teatro, manifestações artísticas cantadas e decantadas por todo tipo de saber.

 

Afirmar que “TODO CORO É CÊNICO” é arriscado.

A naturalidade de um coro, o mero ato de cadenciar música com gesticulação, não podem ser traduzidos por “ações dramáticas” na sua dimensão mais significativa. Nada em oposição às maneiras diferentes e divergentes de um coro estar em cena quando opta por não permanecer na versão clássica, muito menos contra o coro que baila em cada música cantada, ou contra aquele que “ilustra” a canção ou mesmo contra o coro que canta caminhando e se movimentando uniformemente quando se apresenta, mas daí a ser considerado “cênico”, do ponto de vista da arte teatral, há enorme distância. A descontração de um grupo não encerra a participação do cênico na obra de um coral quando este pretende ser híbrido em sua proposta ou até mesmo na denominação. As peripécias cênicas do coro já tiveram seu apogeu. As últimas ideias irreverentes e as atitudes de “quebra de padrão” já foram lançadas... E isso lá se vai perto de quarenta anos! O correr das coisas indica que é fundamental estar sempre em permanente conquista, como o “movimento embrionário” do início dos 80 já sinalizava.

Para referendar a visão de futuro de alguns importantes criadores que sacudiram o canto coral na alvorada da década de 80, vale destacar no depoimento de Nestor de Hollanda em Ensaios – publicação aqui citada – o que ele relata, entre outras coisas, sobre a evolução de sua parceria com Marcos Leite. Hollanda conta que ele e mais amigos de Leite, depois do “Coral da Cultura Inglesa” que virou “Cobra Coral”, insistiram com o maestro para que ele tivesse seu próprio coral considerando as conquistas e inovações dos trabalhos anteriores. Assim, das (salutares!) provocações ao maestro Marcos Leite, que contava com a “cumplicidade” de Regina Lucatto e Nestor de Hollanda Cavalcanti, “em meados de 1984”, nasceu a “Orquestra de Vozes – A Garganta Profunda” com grandes expectativas: “E voávamos alto nas ideias e nos sonhos. Almejávamos tornar a “Garganta” o coro profissional que o “Cobra Coral” não chegou a ser. Queríamos que, nas apresentações, o coro fizesse um show completo com direção cênica, iluminação, figurinos, som amplificado. Apresentar-se a capella, claro, mas também com acompanhamento instrumental.”[5]  

Ambições reveladoras de produtores de arte antenados e multifacetados. Inquietações de Marcos Leite, criador permanente, idealizador e realizador de grandes recursos que nunca deixou de perseguir o melhor. Na fala de Hollanda Cavalcanti reconhece-se a visão prospectiva desses “desbravadores”, que compreenderam – já naquela época – a necessidade da contribuição de outros criadores. Posição nada confortável para o olhar anacrônico e pensamento modelado nos cânones do purismo.

A manutenção e preservação dos triunfos dos desbravadores reserva-se à História, para o futuro mantêm-se as inquietações.

É mais que tempo de aprofundar outros conhecimentos e “revisitar” o território das artes integralizadas na criação do coro cênico. Não é interessante a repetição ad aeternum de modelos consagrados; o desafio é empreender uma espécie de “reconstrução” da modalidade, entendendo-a como produto equitativo, definido e equilibrado entre linguagens. É respeitoso e reverente ter um olhar na trajetória histórica, assim como é vital ter visão prospectiva, bases de uma estratégia de superação.

          A ideia de que “todo coro é...” expõe questões que merecem análises substanciais. Apontaria duas como “provocação” para serem observadas: uma da órbita subjetiva - na medida em que as pesquisas, e consequentemente a bibliografia, são incipientes, há o favorecimento e oportunidade para que cada um estabeleça seus parâmetros e suas “definições” para coro cênico; outra da esfera objetiva - a quase totalidade dos indicadores do cênico, apregoados por criadores na modalidade, não são os mais expressivos e definidores do que seja teatral. Exemplos e demonstrações que temos visto revelam a hipertrofia do canto e a tendência à alienação daquilo que é específico do teatral.

Nenhum coro em si é cênico, assim como nem todo coro cênico é – de fato – cênico. Qualquer manifestação em contrário não é prudente, é uma visão turvada, um nivelamento raso. Atribuir indistintamente a qualidade “cênico” a todo coro, repito, é um equívoco.  

Se embarcar na primeira impressão é fácil, permanecer nela é fatal.

Se ainda não se consegue adotar uma definição satisfatória, que possa subsidiar conceitualmente o maior número possível de criadores na modalidade, devemos, pelo menos, buscar um entendimento aceitável DO QUE POSSA SER CORO CÊNICO em sua expressão mais “bem casada”, e uma das ferramentas para sairmos da condição perigosa de que “todo coro...” é nos apoiarmos em uma ideia mais geral do que possa ser esse produto.      

          Em artigo de 2007, afirmei que CC é uma noção em permanente processo de elaboração, uma definição em progresso. E para oferecer outros subsídios para se discutir o engano de que “todo coro é...”, sem nenhum propósito de ditar regras, proponho, para prosseguir numa trajetória evolutiva, algo menos pretensioso que um conceito: uma preliminar. E a direção que me interessa seguir indica que coro cênico seja entendido como um grupo de pessoas que se reúne com o objetivo de produzir, expressar-se e comunicar-se através de um produto artístico híbrido que contempla duas linguagens: o canto coral e o teatro. Não estou propondo nada além do óbvio.

O que se objetiva, adotando-se essa “preliminar”, é clarear – antes de batizar um grupo de criação – a “identidade” de uma determinada produção, revelando as reais características do trabalho artístico que vai ser consumido; da mesma maneira que sabemos o que vamos encontrar quando frequentamos uma ópera, escolhemos um filme bang-bang, optamos por uma jam session ou quando visitamos a poesia de Carlos Drummond de Andrade. Atento a isso, em se tratando de coro cênico, entendo de maneira bem elástica que estarei diante de um produto artístico que não é o canto coral tradicional, nem o teatro na sua expressão clássica, mas a reunião, o casamento entre essas linguagens. Entendo, também, que não estarei diante de uma obra pela metade. Aliás, não se faz meia obra artística. Fazem-se obras geniais, medíocres, insuficientes, brilhantes, pobres, erradas, desagradáveis etc., mas não “metade” de obra de arte. E é justamente essa ideia de “obra pelo meio” que se percebe nas argumentações que tentam justificar a existência do “elemento cênico” em qualquer atividade coral. 

O produto coral cênico não se justifica pela escolha mais ou menos realista da interpretação dramática ou pela opção minimalista ou não dos arranjos ensejando uma “evolução” em cena. Justifica-se pela opção da reunião das linguagens, através de uma intenção deliberada, que não acontece nem por acaso, nem por consequência: escolhe-se produzir e criar nesse formato. Decide-se. As estéticas ou concepções fundadas nas teorias do teatro ou nos fundamentos e ritos do canto coral são das esferas das direções artísticas: cênica e coralística, que se colocam a posteriori da opção pelo produto. E se escolho, seleciono. Portanto devo levar em consideração vários aspectos, principalmente a apropriação que faço das linguagens. Isso é fundamental: a apropriação da linguagem com a qual se vai trabalhar. Não posso criar sobre aquilo que não tenho noção de como funciona. Não posso aventurar-me em técnicas que desconheço. Não devo apoiar-me em “dicas”. Não é real construir através de palpites.

A esse respeito – reiterando posição já expressa – destaco a fala da celebrada regente Elza Lakschevitz, autoridade em composição, regência e instrumento e uma referência importante para o CC. Na entrevista-depoimento, também incluída na publicação Ensaios (pp. 59 e 60) perguntada sobre como se dava o desenvolvimento da expressão corporal (!), no trabalho do coro a capella, declarou: “A partir da década de 80 começamos a utilizar movimentação cênica como mais uma ferramenta expressiva nos nossos concertos regulares. Uma ferramenta, um meio, mas não o objetivo final (...) Nossa noção de espaço e de palco melhorou muito desde então. Trabalhávamos com um diretor cênico que, além da montagem propriamente dita, conduzia exercícios nesse sentido. Sempre conversávamos muito a respeito das possibilidades cênicas e seu relacionamento com a sonoridade. O posicionamento dos cantores sempre respeitava sua função no conjunto da produção musical (...).  Tudo era pensado com cuidado, de forma a não prejudicar em nada a sonoridade final. E, ao mesmo tempo, oferecer segurança ao corista. Se eu permitisse, o diretor de cena colocava crianças até de cabeça para baixo, mas ele não bolava qualquer movimento sem meu consentimento. Também não havia movimentos gratuitos, ou coreografias muito repetitivas. Os movimentos obedeciam a uma lógica dentro da cena, baseada nos textos que cantávamos. Era uma coisa que eles podiam fazer bem feito, porque atendiam sua finalidade. E sempre foi muito divertido. Acho que isso até foi uma tendência forte no canto coral dos anos 80, que ajudou a popularizar (e por que não “abrasileirar”?) esse tipo de expressão musical”.

Perguntada quem cuidava da cena, Lakschevitz completou: “Frequentemente era o Caíque Botkay. Ele sempre teve sensibilidade para trabalhar com músicos. Ele dizia assim: “– Elza, eles podem fazer isso?”. Às vezes podiam, às vezes não. Repito: a produção musical era soberana. Ele imaginava a cena, mas antes de firmá-la, me perguntava se as crianças podiam cantar daquele lugar sem interferir no som. Essa interação entre regente e diretor cênico sempre ajuda muito.”

Elza Lakschevitz – voz mais que abalizada –  está absolutamente correta e precisa em seu depoimento, sua fala é conclusiva.

Em se tratando de canto coral e teatro, a música deve ter precedência e prevalência. Todavia a primazia não significa sobrepujamento. CC é obra por inteiro, elaborada através do peso das duas linguagens, com direito a uma “semiologia própria”.

Ainda na senda da fala apropriada de Lakschevitz, vale destacar outro trecho do depoimento de Hollanda Cavalcanti – talvez um contraponto –  que reforça posições acerca do CC, principalmente as minhas. 

Sobre a primeira montagem do “Garganta” em Ensaios, página 140, Hollanda relata que: “Moacyr Góes, a convite do Gustavo Ariani e do Marcos, ainda no seu início como diretor teatral, fazia a direção cênica do espetáculo. Marcos dizia que ele faria a “assessoria de línguas”. (...) Ele estava desenvolvendo um trabalho cênico com o coro. Porém, os cantores não estavam satisfeitos com o seu trabalho, todos vinham se queixar a mim, pois o Marcos me passou a “batata quente”. Diziam que o Moacyr queria que eles fizessem determinadas coisas como se eles fossem atores e não cantores. Fui falar com ele. (...) Ele, no entanto (...) não concordou com o que lhe falei, disse que era assim que iria trabalhar e que se o grupo não concordasse, abandonaria a direção”. Resumindo: depois dessa conversa – em não havendo consenso – Góes desligou-se da produção e do grupo.

Trago esse testemunho de Cavalcanti não para vitimizar um ou demonizar outro, muito menos para anunciar um mortal kombat entre linguagens, o destaque é para reafirmar que, em se tratando de coro cênico – em que as linguagens NÃO SÃO EXCLUDENTES! – a anterioridade, a antecedência da   música deve ser estabelecida.

Adoto essa posição – conceitual e prática – sobre a relação canto coral e teatro. Conceitualmente: minhas ideias estão expostas desde o primeiro artigo (2007) reafirmando sempre a precedência do canto em relação à cena... sem, contudo, criar uma relação de patamares diferentes. Praticamente: o que digo nos escritos, executo na direção cênica do Bossa Nossa!

 

Ainda no âmbito das “ESPECULAÇÕES CONCEITUAIS”[6],  curioso  observar o avanço que é para uma teorização mais elaborada o que a “enciclopédia livre” (!) Wikipédia (vide internet)[7] traz no verbete coro cênico: “... trabalho de teatralização de uma música ou de um espetáculo coral. Ele ocupa dramaticamente a cena, dando forma, valor e emoção a toda a expressão musical. Utiliza nessa técnica todos os recursos disponíveis no teatro, na dança, no musical e na ópera”. Sem dúvida é uma busca de conceituação instigante e provocativa. Intenção explícita: integralizar o todo – estéticas e práticas de outras linguagens – com a expressão musical, tendo como resultado, o “pleno” delas.

            A não observância do especifico dos processos de produção, principalmente da expressão teatral, alimenta o equívoco de que “todo coro é...”

            A criação na modalidade coro cênico é resultado de duas experiências. Excetuando a genialidade ou a excepcionalidade, e para ficar apenas na polaridade teatro&canto coral, existe o criador que domina teórica e tecnicamente o canto coral, e aquele que domina teórica e tecnicamente o teatro. São distintos. Embora esses criadores devam convergir para uma única concepção – e é bom lembrar que, apesar de parecer paradoxal, na modalidade coro cênico, não se pensa, nem se cria isoladamente – há a particularidade, a “obrigatoriedade” de viverem a solidão da criação. A necessidade de individualmente projetarem ad libitum no espaço cênico virtual de cada um as inúmeras possibilidades da encenação; encenação, lato sensu, de canto coral e teatro.

A produção artística em coro cênico realiza-se através de diferentes dinâmicas criativas abrigadas no convergente da música e no divergente do teatro, requisitos já mencionados em artigo anterior. E reforçando o ponto de vista teatral da modalidade, não é demais dizer o que é patente: se a cena foi criada, intencionalizada, para vinte, trinta personagens, com as necessárias caracterizações individualizadas, mesmo que esse “batalhão” vá representar “o” povo, “a” turba, “os” miserables, a falta de um único atuante se evidencia: existirá um “buraco” na cena. A cena, e todo seu significado, perde. Um pouco diferente do que acontece no canto. Se a cena, por princípio, foi criada com o peso de todas as personagens, se as elaborações do processo de criação são significativas, se o espetáculo está rigorosamente em cima da concepção, se há o entendimento técnico, racional e poético do conjunto das ações de todos os papéis, então não se pode “matar” a personagem inconsequentemente. Riscá-la da história. Desprezar aquela “individualidade”, mesmo ela sendo da “multidão”. “Papéis” não podem ser liquidados, personagens não desaparecem simplesmente porque o intérprete faltou. Claro que há esquemas de “regra três”, trocas, nova marca da cena, etc., mas dependendo da construção cênica, pode não existir a possibilidade de substituições ou o uso do “sistema coringa”, por exemplo. Todavia o que se quer aqui assinalar como assunto de discussão não é encontrar esquemas para possíveis alternativas – que, claro, repito, existem – o que se quer é discutir o princípio das dinâmicas!

          – Ah! Mas o público não vai nem perceber!

            Bem, se esse for o argumento, melhor nem continuar a discussão.

 

            Outro aspecto importante a ser observado, que também arranha a ideia de que “todo coro... etc., etc.”, é que A CENA NÃO É UM ESPAÇO DE “VALE QUALQUER COISA”.  

Sem entrar na seara da estética, por exemplo, há regras e convenções no jogo da cena, que devem ser consideradas porque são resultados de pesquisas e estudos... História!  Não se trata de defesa intransigente, xenofobia ou atitude purista em resguardo às leis do teatro, apenas que não se pode ignorar todo um conhecimento acumulado. A cena é território, domínio do(a) personagem[8]  em sentido extenso; melhor, qualquer espaço “tornado” cênico é seu universo. A manifestação artística incluída na categoria “cênico” contempla a personagem. Personagem é uma noção mais elaborada, melhor acabada, mais evoluída do que “tipo”. Contrapor personagem a tipo, aqui, faz-se unicamente para efeito ilustrativo. O tipo é uma criação fugaz, rápida, volátil, epidérmica, vai embora assim como apareceu... velozmente. Seria algo como uma criação bidimensional - apenas altura e largura. Isso está presente, prioritariamente, nos processos laboratoriais de criação e improvisação, nos planos iniciais de soerguimento da personagem. E é praticamente essa a criação que temos visto em cena quando o espetáculo se apresenta como “coro cênico”. Quando a “criatura” começa a evoluir, a criar contornos mais definidos, quando o processo de concepção é resultante de investigação criteriosa, quando se adensa, a “carne” se revela e projeta a criação para as bases, aos fundamentos da personagem. Logo, a personagem é a evolução, a qualificação do tipo, o mergulho nas características esquadrinhadas, deduzidas, descobertas mais elaboradas, etc. Na criação do tipo, trago para perto de mim o “perfil”. Na esfera da personagem, eu caminho em direção à sua construção maior.  Ela é quem deve revelar-se em cena... Não “eu”!

           Constantin Stanislavski, no terceiro capítulo do seu livro A Construção da Personagem, diz que: “Há atores e principalmente atrizes (para efeitos deste artigo são necessárias ressalvas, leia-se também coralistas) (GRIFO MEU) que não sentem necessidade de preparar caracterizações ou de se transformarem noutros personagens, porque adaptam todos os papéis a seu encanto pessoal. Edificam o seu êxito exclusivamente sobre essa qualidade (...) Há uma grande diferença entre procurar e escolher em nós mesmos emoções que se relacionam com um papel e alterar esse papel para que sirva aos nossos recursos mais fáceis”.

Entretanto, com essas colocações, não se quer aqui, nem em qualquer outro lugar, a “ditadura” da expressão; nem a inversão de prioridades. Mas não se entra em cena impunemente.

 

AS CRÍTICAS AO CORO CÊNICO, também sugerem pontos para reflexão.

Na quase totalidade delas evidenciam-se mais os reflexos do corporativismo do que questões técnicas e artísticas. Os ortodoxos consideram essa arte – coro cênico – uma “arte menor”. Continuam as críticas questionando a própria denominação, argumentando que um coro será cênico pela simples razão de ser posto em cena. Afirmam também que o fato de se agregar diversas linguagens ao canto coral pode resultar em baixa qualidade musical, por exigir mais do coralista. O repertório do CC ser escolhido predominantemente em cima da MPB é também motivo de crítica, uma vez que essa “opção” o levaria a ser visto de modo depreciativo.

          Essas observações – desvio de foco, capacidade técnica comprometida, prejuízo da performance, etc. – são “redutivas”, ressaltam tão somente a perspectiva do canto coral e fecham-se para outras conquistas. A regente Rejane Ferreira de Paiva também contesta essas observações: “... a trajetória histórica da associação da música com outras modalidades (...) mostra que a crítica quanto à baixa qualidade técnica dos espetáculos corais cênicos advinda da soma de linguagens é uma preocupação superficial e mal fundamentada: as ricas possibilidades artísticas que já se desenvolveram ao longo dos tempos são mais que suficientes para comprovar seus resultados positivos”.

As críticas afunilam-se e desembocam em um único “medo”: adensar os trabalhos na perspectiva do teatro significa comprometer a qualidade musical do coro.

Aqueles que demonstram preocupação com isso devem se preocupar, sim! Devem temer pela qualidade sonora do grupo, se a plataforma criativa for estratificada sobre a intransigência, o antagonismo, as veleidades das disputas; se as linguagens se digladiarem, não reconhecendo qualquer possibilidade de cumplicidade. É certo que se deve recear pela vinculação do canto coral ao teatro sempre que o ranço, o mofo, for constatado. Os puristas devem ficar em permanente alerta.

Entretanto, se houver a associação canto coral e teatro, na perspectiva do CC como entendo, em que a questão musical tem prevalência, é líquido e certo que o teatro não deve “entrar” na relação com sua carga total – ou pesada.  É evidente que a questão teatral deve ser adaptada, que a criação em teatro – métodos e técnicas – deve ser estudada, pesquisada e projetada ESPECIALMENTE para esse “casamento”. O “fazer teatral” deve ser específico, particularizado, construído especificamente para aplicação coral. Não há malabarismos, não há pirotecnia.

 

UMA ÚLTIMA PALAVRA, PORÉM NÃO A DERRADEIRA.

Verificando material que trata de CC, e que é possível ser encontrado em bibliotecas, anais de eventos, internet e outros meios, pouco é explicitado acerca do que se entende como “cênico”. Todavia sobre a canção original ou arranjo, as argumentações, defesas, explicitações, discussões e problematizações de toda ordem, fundam-se em elaborados estudos que avançam em todas as direções compreendidas na expressão musical.

Sobre o “cênico”, a quase totalidade dos documentos limita-se a descrever o que é feito, são relatos de experiência. s. m. j., o trabalho de Patrícia Costa, Coro Juvenil: por uma abordagem diferenciada (UFERJ 2009), destaca e aquece a relação canto coral e teatro. Costa dedica todo o quarto capítulo de sua dissertação de mestrado a discutir a importância e necessidade do adensamento dos “recursos cênicos” na atividade coral, quando a atividade coral se enlaça com a arte cênica.   

Sob o manto de um conceito bastante estendido pelo que é possível examinar no material pesquisado, quase tudo é passível de ser cênico: “a entrada do coro, o agradecimento do coro, o movimento pendular do corpo, menear a cabeça, voltear os braços, bambolear as pernas”, etc. Todas essas concepções sugerem uma similitude rudimentar com “a bela e a fera”, qual seja, o dito “cênico” no papel de vilão aparece quando a proposta teatral aproxima-se do canto coral, podendo comprometer a qualidade musical do coro, aliás, essa é uma das críticas mais comuns ao CC; e no papel de “mocinho”, quando o dito “cênico” apresenta-se como possibilidade de  alinhavar a cena ou quem sabe ser subjugado. Esta, inclusive, uma ideia que ganha corpo, e representa, sem necessidade de mascaramento, o “aceite” do canto coral – ou de quem se apossa dele – em relação às cênicas e outras expressões.

Vale lembrar que a manifestação da arte – seja a arte de que natureza for – não necessita de concessões. A reunião de uma com a outra expressão, a mixagem das manifestações artísticas funda uma nova modalidade. É com esse propósito que acredito que está mais do que na hora de “refundar” a modalidade coro-cênico, deixando de pensá-lo prioritariamente sob um único olhar.  Para isso, é preciso começar fazendo autocrítica.

[1] Acerca dos dois “grandes”, Samuel Kerr e Marcos Leite, é interessante conhecer a dissertação de mestrado de Irene Tupinambá: Dois momentos, dois coros. Conservatório Brasileiro de Música. Rio de Janeiro, 1993.

[2] LAKSCHEVITZ.  Eduardo, org.  Ensaios: olhares sobre a música coral brasileira. Rio de Janeiro: Centro de Estudos de Música Coral, 2006.

[3] Partitura do arranjo de Alexandre Zilahi citada por Rejane de Paiva.

[4] Nestor de Hollanda Cavalcanti, Cobras e Lagartos, partitura editada por Ed. Irmãos Vitale, RJ. 1981

[5] Nestor de Hollanda in Eduardo Lakschevitz, org. op. cit. p. 136.

[6] A título de curiosidade, no banco de teses da Capes, somando dissertações e teses, o que se  pode-se verificar sobre coro cênico não chega a uma dezena de trabalhos acadêmicos. Garimpando em anais de congressos, registros de associações e entidades que  promovem encontros, seminários e outros tipos de reuniões científicas ligadas ao objeto deste artigo, a  produção de  TCC, resumos de conferências, relato de experiência,  estudo de caso, documentos teóricos ou de aplicação, etc.,  talvez atinjam duas dezenas de “papers”.

[7] Consulta feita em maio de 2010.

[8] As obras de Constantin Stanislavski, “A preparação do Ator”, “A Construção da Personagem”, “A Criação de um Papel”, entre outras, são boas referências para assuntar o tema, mesmo não sendo o teatro o foco do interessado. É  uma valiosa contribuição a todos que adentram a cena com suas criações.

A ATUALIDADE DE “500 E TANTAS HISTÓRIAS...”

A ATUALIDADE DE “500 E TANTAS HISTÓRIAS...”

Magno Bucci 2008

            Quando a ideia de comemorar os quinhentos anos do descobrimento do Brasil, em 2000, entusiasmou e ganhou corpo em todos os quadrantes, o Bossa Nossa decidiu engrossar as festividades. Mas apenas passada a empolgação inicial, uma questão crucial colocou-se para o grupo: o que fazer – através de nossa seara – para celebrar o auspicioso aniversário? Seria interessante trilhar o convencional? Deveríamos fazer o “correto”? Deveríamos ser triunfalistas na abordagem histórica? Mostrar ufanismo? Produziríamos um jubiloso “show”?  Como celebrar a data fugindo ao previsível? 

As discussões com o coro – saudáveis e deliciosamente anárquicas – confirmaram as suspeitas: deveríamos rejeitar qualquer possibilidade de um espetáculo “oficial”. Era consenso não nos apegarmos ao institucional. Com esse Norte, estava traçada a linha mais geral do trabalho. E com essa direção, embarcamos – o maestro José Gustavo Julião de Camargo e eu – no cordão festivo geral e criamos o espetáculo temático “500 e tantas histórias...”, refletindo o anseio do grupo na saudação aos quinhentos.

Propusemos, então, uma encenação simples, um espetáculo que não fosse linear, nem por inteiro do ponto de vista da História, ou seja, não teríamos o compromisso didático de começar pelo descobrimento e terminar, por exemplo, evidenciando a mixórdia que há anos vem frequentado a política tupiniquim, a violência urbana etc., etc., etc. A direção artística do espetáculo, refletindo uma leitura particular da idade do BR, entre outras coisas, brincaria com a “unidade de tempo”. Recontar a trajetória dos quinhentos de maneira enviesada e saltada atendia aos anseios do grupo, porque, desta forma, o Bossa se apropriaria como quisesse dos fatos e não colocaria o espetáculo servindo à ilustração dos acontecimentos cívicos e/ou históricos.

Fincamos os pés na historicidade e contemplamos a proposta “anárquica” do Bossa, propondo, através de uma comemoração singular, um produto artístico capaz de captar essências e não totalidades. Entre outras estimulações nos inspiramos nas imagens reais e oníricas de mestres como Portinari, Brecheret, Tarsila, Aleijadinho, e muitos outros, para contar tantas histórias. Recorremos também ao brilho da natureza do mamulengo; à riqueza e diversidade do nosso carnaval; ao bucólico da vida de milhares de brasileiros; ao Brasil campesino e multiétnico; ao modo de ser dos nossos primitivos; ao caos urbano; aos fortes contrastes culturais; ao misticismo e ao sincretismo religioso. Enfim, buscamos “brasilidade”, investindo na identidade nacional contra a modelagem estrangeira. Tudo isso sem deixar de lado nosso natural sentido poético manifesto nas relações mais abrangentes de amor.

Nessas águas, o espetáculo “ 500 e tantas...”  lançou suas âncoras. 

Essa recorrência projetou a concepção do espetáculo e apontou uma estética: “...a trilha-colagem, que se sobrepõe aos arranjos, foi construída segundo a “estética do arrastão” onde toda a sinfonia diária do lixo civilizado, é matéria prima para a construção de contrapontos, harmonias e ritmos”  buscando expressar “ a sonoridade desse país de muitas bandeiras, “arlequinal”, multifacetado, sincrético, polifônico, antropofágico, colonial, pós-moderno, trash (...) onde a cena reflui a vida dia a dia: os fatos, festas, folguedos e folclore do nosso cotidiano prismático” (Release do espetáculo).

 

QUEM PODERIA C (a/o) NTAR UMA HISTÓRIA COMO ESSA?

            Quando se fala em manifestação cênica, falamos em personagem. Por mais que se torça o nariz e por mais rudimentar que se possa imaginar essa “entidade”, o território da cena é domínio da personagem. Com essa necessidade e com um sentimento de “rebeldia”, de subversão da história, que personagem construir para c(o/a)ntar os 500“? Que “persona poderia perpassar por “...tantas histórias”, representando-nos?

Com um olhar definido e enviesado sobre nossa trajetória, os protagonistas da nossa “festa” só poderiam ser aqueles que passassem pelas nossas janelas abertas. Aqueles que apenas sabíamos da existência. Aqueles que jamais veríamos seus rostos ou saberíamos de suas dores e sobrenomes.

Nossos heróis e heroínas seriam os anônimos, a grande legião de homens e mulheres sem celebridade. Desprovidos que se iludem e são iludidos. Seriamos nós, apenas com o único RG de “pessoas comuns” que contaríamos a trajetória dos quinhentos. Esse “todos nós anônimos” resultou numa personagem plural, camaleônica, caleidoscópica, que caminhou pelo “500...”  numa tentativa síntese do silvícola ao homem cibernético. No centro do palco colocamos o brasileiro sem destaques que, visto de longe, poderia ser mais um “zé” sem letra maiúscula, fruto da miscigenação e do multiculturalismo, mas que de perto mostrou-se um “Zé” com estatura de qualquer grande homem.

Procuramos vestir essa personagem como um permanente lutador, algo próximo ao jogo da capoeira, marca forte do BR. Esse figurino pode, perfeitamente, encarnar o espírito batalhador, resistente e guerreiro do “zé”.  Essa personagem também vestiu a moda mais comum das ruas: camisetas simples ou de propaganda, blusas e blusinhas, fardamento de time de futebol e de outros esportes, uniformes em geral, camisa social/paletó e gravata, aventais etc. E essa personagem pisou o espaço cênico como pisamos o chão nosso de cada dia, com tênis falsificado, botina, sapato de liquidação, sandália havaiana, rasteirinha e outros “pisantes” simplórios e “da hora”. E a personagem ostentou no rosto pinturas indígenas – nossa eterna cicatriz – sem relevância se esse sinal pictórico revelava preparo para a guerra ou celebrava um pacto de paz.                       

Essa foi a personagem – multifacetada – que o Bossa criou e deu voz através do “500 e tantas...”

 

ALGUNS INDÍCIOS DA CONTEMPORANEIDADE

Na montagem do espetáculo, destacam-se com contundência e se mostram permanentemente sintonizados com o momento histórico, dois “marcos”, entre outros, que atestam a atualidade de “500 e tantas histórias...”. Aspectos que na realidade são interfaces, uma imbricação, verso/reverso, atos complementares de uma única intencionalidade. Expressões que se interpenetram: uma cênica/sonora e outra pictórica. Uma dessas expressões é o arranjo e encenação de “Aquarela do Brasil” de Ari Barroso, a outra é o elemento cenográfico do espetáculo: mapa do Brasil.

O arranjo do maestro Julião de Camargo para “Aquarela...” é lancinante, denso, pungente, doloroso, aflitivo. Corrosivo. Provoca uma espécie de sufocamento, uma opressão que vai contaminando o público. Um contraditório com o que tradicionalmente a canção de Barroso representa e simboliza, uma vez que o que está no inconsciente coletivo é uma manifestação alegórica e carnavalesca. Quando se reconhece a música, o primeiro impacto é uma violentação, a primeira sensação é de incredulidade. Essas impressões inoportunas se avolumam até o desconforto.  A sensação tende a ser minimizada na medida em que se consegue ler um pouco melhor a intencionalidade do arranjo junto com a concepção da cena. Todavia, o que prevalece no espectador é uma paralisia incômoda que permanece até o black-out.

Detalhando mais a cena, ela se inicia no vazio da canção, no espaço de uma pausa. O elenco desfaz a postura da ação anterior e começa a encarar o público com expressão grave. Já carrega o propósito do arranjo e da ação dramática que deve intensificar-se. O grupo caminha lentamente, sempre com expressão decidida e ostensiva. À medida que cada um chega na sua marca, assume uma posição única e a “congela”. O coro canta em tom de visível afronta ao “personagem oculto”, com a musculatura e articulações paralisadas, exceto – claro – o aparelho fonador. A postura deve ser uma só. A direção do olhar deve ser unifocal. Olhar intenso, reto. Busca da cumplicidade e do compartilhamento. Mirar o espectador fixamente é “trazer” o público para junto de si e todos – virtualmente – olharem com determinação para o oponente – o “elemento oculto”. 

E quem é oponente? O “elemento velado”?

Fácil reconhecê-lo. Ele está devidamente identificado no cenário nacional; aliás, qualificado desde o descobrimento.

            A iluminação concorre para coroar a cena. A “geral branca” quer revelar tudo, mostrar sem nuances de luz e sombra, claro e escuro. Não se quer esconder nada. E a iluminação não se concentra apenas em colocar a intencionalidade sob foco luminoso, ela vai além: terminada a letra cantada, o coro permanece congelado. A trilha sonora agora é apenas um “surdo” que produz um som ritmado e lamentoso que ecoa para além das fronteiras do palco e plateia. A “geral branca” permanece a 100%, incidindo sobre o elenco imóvel, sem qualquer sonoridade. O “surdão” chega a um volume quase ensurdecedor e, sem avisar, cessa. A “luz branca”, o vazio abismal, crescem desproporcionalmente.  A cena – congelada e totalmente iluminada – permanece muda... MAS GRITA ALTO! São alguns – longos – segundos sob o mais absoluto silêncio. A energia da interpretação estende seus tentáculos sobre todas as cabeças na plateia e o incômodo é quase insuportável. O desconforto esgarça os nervos. Destempera. O público é invadido além do que se permite quando se está numa posição contemplativa. É uma espécie de asfixia... aí vem o black-out.

Não é possível não se incomodar com a “Aquarela...” feita pelo Bossa em “500 e tantas...”

O resultado é desconcertante e discordante. Desarranja.

O casamento “ideológico” do arranjo com a cena revela a indignação, inquietação, desaprovação, revolta de todos os “zés”. É a repulsa, o repúdio, o escárnio que demonstramos a cada dia, frente aos escândalos e desrespeitos. Continuamos com uma visão “perplexada” do Brasil oficial. Um sentimento de que continuamos ultrajados, insultados, afrontados. Vivendo com o Estado corroído e corrompido, sujeitos à toda sorte de sortilégios da classe política, da justiça deficiente, dos interesses de conglomerados, miséria, especulação, indigência, “deseducação”.

A cena é, toda ela, um peremptório “não”, o “basta” que gritamos diariamente. 

A pujança do arranjo e a contundência da cena contribuem para que o espetáculo mantenha sua força e contemporaneidade. “500 e tantas histórias...” mantém-se atual porque os mesmos motivos e provocações que observamos ao ler o momento histórico em 2000, sempre estiveram ativos. 

 

CENÁRIO

O outro ponto de destaque é o elemento cenográfico – mapa do Brasil projetado em cerca de 4m2 – que foi pensado para ser instalado no lugar da rotunda ou do ciclorama, deixando à vista toda extensão do espaço cênico e área de maquinaria, com suas estruturas e os “entulhos” normais. O mapa funciona também como balizador. O contexto do fundo do palco tem um plano de luz –  passível de ser identificado e percebido – que potencializa o halo de luz produzido pela iluminação do espetáculo. Nessa proposta cenográfica estão embutidas duas visões do País: uma oficializada, contida na semiescuridão do fundo do palco, e a outra, o espaço cênico do Bossa, onde contamos nossa versão da História.

O mapa feito de pedaços de tecido não encorpado e de diversas cores deixa a luz atravessar, funcionando, também, como “gelatina”. Os pedaços de cores suaves dão a ideia de divisões, e ele é sempre mostrado ao público pelo avesso, com as costuras aparentes. É fixado numa grande rede (usada em quadras esportivas) com pregadores de roupa, de modo que não só a fixação como também a mobilidade é facilitada. Esse é o ganho dessa cenografia “interpretativa”.  A função do mapa nesse suporte ganha um contorno proposital, sazonal.  Esse elemento não é apenas pano de fundo, decoração, uma ilustração na caixa preta do palco italiano, mas antes assume um significado ideológico através de sua virtual mobilidade.

Explicando mais: quando o espetáculo teve sua estreia em 2000, vivíamos o segundo governo FHC. Muito embora especialistas afirmem que a economia teve mais acertos do que erros, não faltaram escândalos: os “custos” da reeleição, Sivam, Proer, DNER, socorro aos bancos, a questão da Amazônia, o apagão e tantas outras peripécias. O povo penalizado. O País diminuído. A posição da “cenografia” refletia situação vergonhosa. Nossa carta geográfica fixada fora de eixo, deslocada, torta, demonstrava o estado de ânimo do brasileiro cansado da sujeira e corrupção. 

Com a eleição de Lula, o mapa voltou à sua posição original. Retomou seu devido lugar na ordem mundial. Reconquistou seu status soberano. Milhões apostaram nas mudanças. Havia uma clara intenção de renovação. Um clima de crescimento. Um plano desenvolvimentista... Mas aí “vieram à luz” as mazelas e um dos maiores escândalos da história brasileira: o mensalão.  Então os ventos se tornaram desfavoráveis, e o nosso “inconstante” mapa voltou a oscilar. Fiel à balança de nossa insatisfação, como um pêndulo frenético voltou a balançar, insistindo em fixar o Rio Grande do Sul no Oiapoque e o Amapá no Chuí.

Se um dos projetos de arte do Bossa for manter o foco na História brasileira, abordando os fatos, ora de forma lírica e poética, ora de maneira ácida e azeda, como fez em “500 e tantas histórias...”, o espetáculo contempla plenamente a pretensão.

“500 e tantas histórias...” é uma ótima “carta na manga” que o grupo tem: um zap, seu talismã. Um libreto permanentemente atual.

CORO CORO CÊNICO: BREVES REFLEXÕES A PARTIR DE UMA PRÁTICA

CORO CÊNICO: BREVES REFLEXÕES A PARTIR DE UMA PRÁTICA

Magno Bucci 2007

Com o propósito de contribuir para a discussão sobre a natureza do coro cênico - através do viés do teatro e sem pretensão de contemplar a extensão do assunto - as questões aqui assinaladas foram levantadas a partir de observações sobre outros trabalhos, de pesquisa a respeito da atividade em fontes variadas, mas, principalmente, através do olhar permanente sobre a prática do Bossa Nossa. As contribuições - estribadas no trabalho de pouco mais de quinze anos como diretor cênico do Bossa - mais que esboçarem uma maneira de definir e aplicar um conceito de cena e canto coral, reitero, são provocações, pontos de partida para reflexões acerca do tema unicamente através da perspectiva teatral.

CORO CÊNICO é uma noção em processo de elaboração, uma "definição" em progresso, uma ideia que arrisca conceituações buscando fundamentos no estudo da evolução do coro grego - vertente na qual o ocidente navega - mais precisamente a partir da manifestação cerimoniosa - rito - que já na fase pré-trágica associava o canto ao recitativo. Se atentarmos também para a magia e animismo dos rituais e cultos que estão na origem do teatro asiático, verificaremos que a mesma associação já se fazia presente.

Entretanto, mesmo atestando esse consistente nascedouro, esse rico lastro, essa paternidade significativa; mesmo admitindo as interseções na linha música/teatro (ópera/opereta, music hall, teatro musicado/teatro musical, etc.) às quais podemos atribuir propriedades inspiradoras/motivacionais do coro cênico, o campo de conhecimento mantém-se inexplorado. Sobre o assunto praticamente não existe literatura. Os minguados estudos científicos, as escassas contribuições acadêmicas ou opinativas restringem-se basicamente a olhar o coro cênico através da perspectiva musical. Um coro, seja ele de que natureza for, está, na quase totalidade dos casos, vinculado a um único profissional - o maestro. O regente invariavelmente concentra em si o processo de ativação e desenvolvimento de um coro em todos seus desdobramentos.

O que é possível garimpar - em território quase desértico - acerca de coro cênico, resume-se a ementas, entrevistas, programas de espetáculos, propostas de oficinas, minicursos, raríssimas pesquisas acadêmicas, internet. O conteúdo recolhido dessa "literatura" revela algumas apropriações e aplicações feitas pela prática coral, do que é específico da arte cênica. Todavia, no que tange à cena, as argumentações sinalizam precários e superficiais eixos de análise acerca do que anunciam os princípios mais gerais da expressão artística teatro.

Qualquer site de busca para capturar "coro cênico" oferece uma quantidade - significativa - de referências que atinge a marca de alguns dígitos. Entretanto os paradoxos sobre o tema aparecem de imediato, sem a necessidade de se rebuscar muito nenhuma pesquisa nesse "universo". Alguns deles: há agrupamentos corais que propõem o desenvolvimento coral cênico através de exercitação a partir da "articulação das palavras, utilizando a expressão corporal e facial" com a finalidade de "desenvolver nos participantes uma interpretação expressiva da música". Disciplinas curriculares de "coro cênico" praticamente podem ser condensadas numa única ementa que invariavelmente oferece a prática musical coralística, aplicada ao teatro, como instrumentalização para outras disciplinas de "música e ritmo". Quando há necessidade de seleção de interessados em participar desse tipo de trabalho, a escolha passa pela avaliação da aptidão do candidato além de "entrevista, análise da extensão da voz, afinação, ritmo, memorização de melodias e coordenação motora para cantar e dançar ao mesmo tempo". Outros corais cênicos, após fundamentarem substancialmente a parte musical a ser desenvolvida, acrescentam que utilizarão nos seus espetáculos "elementos de linguagem cênica e expressão corporal"; na mesma direção há grupos que "através de arranjos originais (...) e com o aproveitamento natural e consciente do corpo desenvolverá uma proposta estética única, numa clara integração das artes"; a interface cênica de um coro pode se traduzir também "na transposição para o cenário e os próprios corpos dos cantores a força das composições escolhidas...". Há trabalhos em que a proposta do cênico é desenvolvida "pelo próprio grupo e a regente, desde a pesquisa do tema e repertório, roteiro, figurino, textos, proposta cênica, cenário"; há também quem atribua a denominação de "coro cênico" ao próprio trabalho porque esse "valoriza a movimentação e expressão corporal, utilizando-se de figurinos para retratar cada época de suas canções". Singulares são os programas de capacitação que investem na especificidade da cena adensando o conteúdo do trabalho: "desenvolver a linguagem cênica do grupo coral (...) exercício de construção do "personagem" (...) exercícios de integração, desinibição e expressividade, dinâmicas de grupo, jogos cênicos (...) aliada à expressividade vocal (...) também discute com os participantes sobre os recursos artísticos utilizados pela indústria do espetáculo, tais como a cenografia, iluminação, figurino, efeitos sonoros, projeção etc."

Diante de um panorama impreciso, a primeira coisa a se fazer é desativar determinadas armadilhas pré-conceituais. Não é pelo simples fato de se estar no “espaço de representação” que qualquer manifestação é cênica. Não bastam noções de "marcação" no espaço cênico para que a atividade seja assim considerada. Não se pode atribuir a classificação "cênica" à movimentação no palco - ou em qualquer espaço tornado cênico - que ostente um figurino ou se utilize de equipamentos técnicos disponíveis. Essas "explicitações do cênico" são equivocadas. Contra interpretações dessa natureza opõe-se o peso da história e fundamentos teóricos do teatro. A interpretações dessa natureza opõem-se o peso da história e os fundamentos teóricos do teatro. Quando Anatol Rosenfeld alerta que "o teatro é arte de direito próprio" está, ao mesmo tempo, rebatendo a visão equivocada e potencializando a arte específica da cena. Sinaliza, assim, com conquistas de mais de 2.500 anos de história. O que Rosenfeld afirma é que teatro é uma arte estruturada através de teorias e princípios próprios; com fundamentos, estéticas, técnicas e métodos específicos; procedimentos e processos particulares.

Sendo assim, uma expressão de arte "de direito próprio" como é o teatro, o que é levado à cena em seu nome, considerando o modelo clássico ocidental, deve contemplar princípios e fundamentos dessa arte, quais sejam: o trabalho com o texto (em sentido largo) e todas as potencialidades intencionais; a unicidade conceptual, a estética; métodos e procedimentos de construção da personagem; o desenvolvimento das "ferramentas" daquele que representa: corpo, voz e criação; o máximo aproveitamento dos recursos técnicos; as criações cenográficas e de figurinos, além do aparato não visto pelo público que acontece com intensidade da concepção a realização do espetáculo. Dessa maneira, do ponto de vista teatral ou da expressão que tenha interface com o teatro, não basta estar no palco para que a manifestação seja cênica, dentre outras exigências, é necessário que haja, por exemplo, ação dramática. E o coro cênico não goza de prerrogativa diferenciada!

A ideia de que estando no palco qualquer ação é cênica ou que a simples movimentação no espaço cênico é ação nos remete, como declara Patrice Pavis, a uma definição rudimentar de ação: "sequência de fatos e atos que constituem o assunto de uma obra dramática ou narrativa". Pavis diz que essa definição é "puramente tautológica, visto que se contenta em substituir "ação" por atos e fatos, sem indicar o que constitui esses atos e fatos e como eles são organizados no texto dramático ou no palco". Ação é matéria prima da arte que vai à cena. Substrato do ato de interpretar, da representação. Ação dá sentido ao universo da personagem e a materializa. Ação acontece em todo processo cênico, na transposição do plano bidimensional do texto para o plano tridimensional e na concretude da personagem no espaço cênico.

Numa breve síntese teórica, fundada em teatrólogos, ação é o movimento - qualquer que seja ele, físico ou não - que resulta do empenho da vontade em direção a um fim articulado pelo conhecimento. A preocupação em esquadrinhar a essência da ação cênica em todas as teorias e métodos, desde a Poética de Aristóteles, é objeto de estudos obrigatórios de todos envolvidos com as artes em cena. Tomar a ação cênica como mero sinônimo de movimentos e atos apenas, em se tratando de coro cênico, é realizar um trabalho de "ilustração" da canção somente. Se não for dimensionada por igual as duas linguagens, se o binômio música/teatro não for equacionado do ponto de vista teatral, dificilmente será alcançada a essência do "cênico". A equiparação do peso das linguagens, a ênfase na necessidade do equilíbrio e aprofundamento, além da perspectiva intercambiante entre música coral e teatro, significam buscar alicerces para um conceito de coro cênico.

Esse necessário nivelamento não deve ser entendido como uma tentativa de inversão de prioridades, é antes um rumar para outro norte com a intenção e propriedade de se traduzir e adaptar para a modalidade coral cênica o que já se sabe e já se conhece há muito acerca de teatro. Para efeito de interface com  coro, a acepção de interpretação, por exemplo, ou de qualquer outra função "exclusiva"(?) do teatro, não deve pretender a profundidade nem a densidade dos mesmos conceitos aplicados ao espetáculo teatral, uma vez que o produto artístico em questão é diferenciado, necessitando de reelaborações para sua maturação. Aconselhável é não emagrecer os processos "tectônicos" da arte cênica "casada" com o canto coral, nem "queimar etapas" técnicas e criativas, muito menos caminhar a reboque.

No Bossa há organização, estrutura e funções definidas. A coordenação do grupo, os arranjos e a direção musical são responsabilidades do maestro José Gustavo Julião de Camargo - também compositor. Eu respondo pelo "cênico" e algumas linguagens que integralizam a cena: iluminação, figurino e cenografia. Para nós, coro cênico é a imbricação de duas linguagens - uma hibridização – em que teatro e canto coral compõem-se com equivalências iguais, sem predomínio de uma sobre outra. Nessa composição orgânica, a música é ponto de convergência - é necessário afinar, timbrar; a cena é divergente - do caos à ordenação, da improvisação à marcação. Isso exige que a proposta artística para o espetáculo seja de tal maneira integrada que ora a criação coral (que pode ser obra originária ou obra derivada) pode determinar o foco da encenação, ora a proposta cênica pode sugerir o "tratamento" à música ou mesmo há a possibilidade da convergência das virtualidades cênica e coralística. Vale dizer também que quando é preciso os naipes estarem juntos, destacarem-se ou qualquer outra necessidade para se privilegiar um solo ou qualquer passagem musical, a cena deve favorecer essa necessidade, do mesmo modo quando a cena "hipertrofia" uma intenção ou pretende frisar uma interpretação, enfatizando o crescimento da ação dramática, o "arranjo" se amplia, funde-se a ela, prolonga-se, coroa a cena. Muito embora a prevalência seja sempre musical, esse "casamento" sempre resultou produtivo, equivalente, expressivo e intencional, tanto musical quanto cenicamente.

No Bossa, o maestro concentra a responsabilidade sobre a música e o diretor cênico responde pela cena. Dessa maneira, se existe uma partitura musical a ser trabalhada, existe também uma partitura cênica a ser desenvolvida. Embora ambas produzam uma única concepção de espetáculo, são independentes e complementares para o produto artístico "coro cênico". As áreas de música e teatro podem influenciar umas às outras, como também podem trocar, sugerir, modificar, conceber, opinar, solicitar, mas cada uma assume suas características próprias na criação.

Do ponto de vista da articulação e equilíbrio das linguagens, não é todo coro que pode pretender ser cênico, uma vez que, mais do que concessão, deve prevalecer uma nova mentalidade coralística, de outra forma, a interface cênica ficará comprometida. Para a efetivação de um coro cênico dentro de uma nova mentalidade coral, vontade não é suficiente se não houver predisposição, estudo e pesquisa. Nesse perfil diferenciado, intencionalmente não incluo pendores, talento ou aptidão, mas simplesmente vocação. Para efeito desta contribuição, "vocação" é entendida como a forma através da qual o coro quer assinar a carta de sua existência, a maneira pela qual deseja que sua história, no todo ou em parte, seja reconhecida. Esse status vocacional está mais identificado com o "projeto de vida" do coro do que com a excepcionalidade de vozes ou performance do conjunto. A vocação, ainda neste caso, pressupõe a necessidade de o coro registrar no seu trabalho a insatisfação e inquietude próprias do pesquisador, o rigor e a disciplina do estudioso, além do exercício permanentemente da autocrítica.

No Bossa, uma das primeiras decisões, que a opção pela concepção e estética coral cênica provocou, foi a substituição do maestro - aquela figura à frente do coro - pelo regente de palco, um integrante do grupo, um participante do espetáculo com lastro musical, habilitado e designado pelo maestro diretor, ou o próprio maestro cantando, para a função de conduzir musicalmente o coro.

Dessa maneira - iniciativa do maestro responsável pelo conjunto - começou a história do Coro Cênico Bossa Nossa.

Comentários mais recentes

17.06 | 17:53

Assisti a um vídeo no tik tok e me apaixonei pelo trabalho maravilhoso…. Estão de parabéns podiam disponibilizar no Spotify ouviria o dia tdo

08.06 | 02:36

Descobri pelo TikTok, estou encantada!! ❤️

29.05 | 22:08

Descobri pelo tiktok e estou encantada! Parabéns pelo trabalho 👏🏾 espero que venham para o RJ!

27.05 | 02:51

acabei de descobrir vocês no tiktok cantando "conversa de boteco" e simplesmente amei, sou apaixonada por MPB, vocês deveriam ter perfil no Spotify. Amei as vozes ❤️❤️❤️

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